A inesgotável riqueza <br> da cultura cubana e a sua literatura
Fiz três viagens a Cuba em períodos bem diferentes da sua evolução histórica, política e cultural, a primeira, clandestina, logo após a eufórica vitória de Playa Giron, em finais de 1962 e começos de 1963; a segunda em 1976, como membro de um júri do Prémio Casa das Américas num período de grande desenvolvimento e expansão cultural; a terceira em 1998, após a grande crise económica que se seguiu ao desmoronamento da União Soviética e do chamado socialismo real e ao posterior e importante desenvolvimento turístico de Cuba, com a persistência do grande sonho socialista, não obstante a realidade de algumas privações e até desigualdades, inerentes a essas transformações.
O que sempre testemunhei em Cuba, para além da alegria e fraternidade das relações humanas, talvez sem par noutras sociedades, foi precisamente a enorme riqueza da criação e da circulação da cultura, desde as quase fabulosas tiragens das editoras à qualidade da recepção. Fruto da educação das massas e do grande sonho igualitário de Fidel, de Che Guevara e dos seus companheiros.
O cubano médio deste meio século de experiência socialista é invulgarmente instruído e, apesar da violência do bloqueio norte-americano, que o tem vindo a privar de muitas das tecnologias necessárias à investigação científica e ao desenvolvimento industrial, ainda pode orgulhar-se do seu sistema de saúde. A medicina cubana já ocupou um lugar de primeira linha na América Latina e continua a fazer «milagres» de sobrevivência.
A trepidante música cubana, o ballet de raiz folclórica, as escolas de arte, o teatro e até o cinema têm prestígio internacional, a par de uma literatura de grande fulgor e variedade, que entronca na poesia e noutros textos admiráveis de José Marti e apresenta modernamente uma riqueza invulgar. Em primeiro plano estão ainda e sempre as obras desses dois gigantes que são Alejo Carpentier e Lezama Lima. Espraia-se depois essa literatura por diversos territórios clássicos e campos de experiência em que avultam poetas como Nicolás Guillén, o revolucionário cantor da negritude, Cíntio Vitier, Roberto Fernandez Retamar, Fina Garcia Marruz, César López e tantos mais que adiante referirei.
Do muito que li da melhor ficção cubana, marcaram-me particularmente o realismo histórico, tocado de magia, de Carpentier, no seu tão lúcido e ao mesmo tempo carnal Siglo de las Luces e a dimensão mítica, a luminosa síntese de várias cosmogonias na obra monumental El Paradiso de José Lezama Lima.
Lisandro Otero não é apenas hoje um grande escritor cubano, mas um romancista e contista universal, em livros tão clarividentes e tão belos como Arbol de la Vida ou Temporada de Angeles. Reynaldo Arenas deixou-nos, entre outras obras fantásticas e brilhantes, o seu arrojado El Mundo Alucinante que, por sinal, à boa maneira do realismo mágico, mostra exércitos napoleónicos entrando em Lisboa pela ponte 25 de Abril. Igualmente Miguel Barnet, mas contrariamente numa linha de reconstituição histórica muito fiel, nos deu, além de poemas, excelentes relatos e romances das guerras que estremeceram Cuba e tanto contribuíram para a formação da sua identidade. Mas são La Vida Real e Ofício de Angeles os seus livros da minha preferência.
É claro que um dos maiores escritores cubanos do século passado, na urdidura da narrativa e na irónica novidade da escrita foi sem dúvida Guillermo Cabrera Infante, o original criador de Três Tristes Tigres. Apesar do seu ódio a Fidel e dos ataques que do seu exílio londrino fez à Revolução Cubana, nunca deixou de ser reconhecido pela intelligenzia cubana como um notável artista da palavra. Leonardo Padura, romancista de grande êxito, hábil manipulador de intrigas policiais em atmosferas caribenhas saborosamente reconstituídas e estuantes de vida, ultrapassa, tal como Vazquez Montalbán, nalguns aspectos seu mestre, a narrativa de suspense e de mistério para nos dar implacáveis quadros sociais, geralmente bafejados de humor, quer em Las Cuatro Estaciones quer em La Novela de Mi Vida.
Pedro de Juan ou Pedro Juan Gutiérrez é um escritor insólito, que cultiva o erótico com rara força e despudor, até à raia do pornográfico e do esterquilíneo. Animal Tropical é de uma extrema violência, tal como Trilogia Sucia de la Habana, mas é ao mesmo tempo rigoroso na análise de caracteres e impressivo na descrição dos países nórdicos, que tanto contrastam com Cuba.
Outros muitos prosadores merecem ser conhecidos em Portugal, como Carlos Victória, Marilyn Bobes, Ema Lúcia Portela ou o excelente Arturo Arango, que obteve com os seus contos o prémio Juan Rulfo e alia a sensibilidade à fantasia, ao talento do inesperado.
Uma pléiade impressionante de grandes narradores, com diversas visões do mundo, da sua ilha, do seu viver, dos seus sonhos.
A boa literatura, mesmo quando não é politicamente empenhada (e nalguns destes casos não o é) cumpre sempre uma função social, mais que não seja a de interrogar e de através da palavra captar sentidos de uma época, mensagens quase insondáveis, tudo o que está latente na permanente mudança.
A uma literatura que cantou a revolução, a transformação, a Pátria e a liberdade sucede naturalmente uma outra mais crítica e inquieta, o que é natural. Mas numa e noutra Cuba está intensamente presente, com a formosura do mar e da serra, as formas de convívio de um povo alegre e afectuoso, moldado pela realidade da educação e da saúde gratuita para todos, do culto da arte e da ciência, do companheirismo, da fraternidade.
Se é certo que a constante ameaça do império americano é responsável não só pela maioria das carências, mas até com frequência por um clima de sobressalto que provoca a auto-defesa, com os seus inconvenientes, a verdade é que a sociedade cubana cria corajosamente espaços de euforia em meio das dificuldades.
A alteração de mentalidades de que o próprio tempo é agente não matou o entusiasmo desta gente, que ama a vida física, o ritmo da rumba e, apesar da redução de edições, causada pela falta de papel, continua a adorar a literatura (está sempre a abarrotar de público o mercado de livros usados na Plaza Mayor da Habana Vieja). Os cubanos habituaram-se a consumir em larga escala arte e poesia, através de exposições, recitais e livros. E, apesar das muitas dificuldades, essa chama não se perdeu. Todos os povos da América Latina olham ainda para Cuba como a Pátria da cultura, o David acossado que resiste ao Golias e leva numa mão a funda, mas na outra páginas brilhantes de escrita.
E, por falarmos de poesia, quero referir que, se Cuba teve no século XIX um grande vate romântico, José Maria Herédia, a produção lírica actual é no geral da melhor safra, com nomes da altura de Cíntio Vitier, Roberto Fernandez Retamar, Fina Garcia Marruz, César Lopez, Manuel Diaz Martinez, José Kozer, Rafael Alcidez Pérez, Georgina Herrero, Reina Maria Rodriguez, Luís Lorente, Fernandez Larrea, Omar Perez, Sigfredo Ariel, David Mateo.
Abel Prieto, o actual ministro da Cultura, tem uma visão extremamente aberta sobre a livre discussão de ideias e pontos de vista, tanto estéticos como políticos. Aliás não é estranha essa sua compreensão do mundo e da riqueza da dialéctica marxista, como objecto de discussão criadora, à amplitude de debates e perspectivas novas, expressas nas melhores revistas de Cuba, especialmente na Temas e na revista da U.N.E.A.C. (União Nacional de Escritores e Artistas de Cuba).
Se é certo que há por vezes em Cuba crispações repressivas, chocam-me profundamente que sejam tantas vezes os Estados Unidos a invocar atentados aos direitos humanos em Cuba, quando precisamente é hoje a América de Bush e dos neo-conservadores quem mais descaradamente leva a morte a outros países, com falsos pretextos, em acções de grande rapina, como a guerra do Iraque, e pratica sistematicamente a tortura, quer em Guantanamo, da forma mais desumana e ilegal, quer nos presídios militares de Bagdad ou nas cadeias secretas da Europa, já publicamente denunciadas.
Mas deixemos o horror da violência e da guerra, para tornar à cultura como meio privilegiado da valorização do ser humano e caminho imprescindível para a realização do socialismo.
Quando os olhares dos povos explorados e sobretudo das camadas mais oprimidas da América Latina se voltam para Cuba, carregados de solidariedade e esperança, é a riqueza da sua Cultura, dessa cultura de que eles são espoliados, uma das razões mais fortes dessa admiração e afecto.
Faço votos, ao terminar esta breve e incompleta panorâmica da cultura cubana, para que na Pátria de Marti, de Fidel e de Guevara, pois Cuba o adoptou, a esse paladino admirável da dignidade humana e da construção de um mundo livre e igualitário, faço votos para que, longe de definhar, como querem os adversários que a cercam, a cultura se mantenha viva em Cuba e possa voltar ao esplendor da difusão que já conheceu, com tiragens de centenas de milhares de livros de qualidade. Acreditemos no fim do bloqueio e lutemos por isso, por um crescimento harmonioso de Cuba, em todos os planos.
O cubano médio deste meio século de experiência socialista é invulgarmente instruído e, apesar da violência do bloqueio norte-americano, que o tem vindo a privar de muitas das tecnologias necessárias à investigação científica e ao desenvolvimento industrial, ainda pode orgulhar-se do seu sistema de saúde. A medicina cubana já ocupou um lugar de primeira linha na América Latina e continua a fazer «milagres» de sobrevivência.
A trepidante música cubana, o ballet de raiz folclórica, as escolas de arte, o teatro e até o cinema têm prestígio internacional, a par de uma literatura de grande fulgor e variedade, que entronca na poesia e noutros textos admiráveis de José Marti e apresenta modernamente uma riqueza invulgar. Em primeiro plano estão ainda e sempre as obras desses dois gigantes que são Alejo Carpentier e Lezama Lima. Espraia-se depois essa literatura por diversos territórios clássicos e campos de experiência em que avultam poetas como Nicolás Guillén, o revolucionário cantor da negritude, Cíntio Vitier, Roberto Fernandez Retamar, Fina Garcia Marruz, César López e tantos mais que adiante referirei.
Do muito que li da melhor ficção cubana, marcaram-me particularmente o realismo histórico, tocado de magia, de Carpentier, no seu tão lúcido e ao mesmo tempo carnal Siglo de las Luces e a dimensão mítica, a luminosa síntese de várias cosmogonias na obra monumental El Paradiso de José Lezama Lima.
Lisandro Otero não é apenas hoje um grande escritor cubano, mas um romancista e contista universal, em livros tão clarividentes e tão belos como Arbol de la Vida ou Temporada de Angeles. Reynaldo Arenas deixou-nos, entre outras obras fantásticas e brilhantes, o seu arrojado El Mundo Alucinante que, por sinal, à boa maneira do realismo mágico, mostra exércitos napoleónicos entrando em Lisboa pela ponte 25 de Abril. Igualmente Miguel Barnet, mas contrariamente numa linha de reconstituição histórica muito fiel, nos deu, além de poemas, excelentes relatos e romances das guerras que estremeceram Cuba e tanto contribuíram para a formação da sua identidade. Mas são La Vida Real e Ofício de Angeles os seus livros da minha preferência.
É claro que um dos maiores escritores cubanos do século passado, na urdidura da narrativa e na irónica novidade da escrita foi sem dúvida Guillermo Cabrera Infante, o original criador de Três Tristes Tigres. Apesar do seu ódio a Fidel e dos ataques que do seu exílio londrino fez à Revolução Cubana, nunca deixou de ser reconhecido pela intelligenzia cubana como um notável artista da palavra. Leonardo Padura, romancista de grande êxito, hábil manipulador de intrigas policiais em atmosferas caribenhas saborosamente reconstituídas e estuantes de vida, ultrapassa, tal como Vazquez Montalbán, nalguns aspectos seu mestre, a narrativa de suspense e de mistério para nos dar implacáveis quadros sociais, geralmente bafejados de humor, quer em Las Cuatro Estaciones quer em La Novela de Mi Vida.
Pedro de Juan ou Pedro Juan Gutiérrez é um escritor insólito, que cultiva o erótico com rara força e despudor, até à raia do pornográfico e do esterquilíneo. Animal Tropical é de uma extrema violência, tal como Trilogia Sucia de la Habana, mas é ao mesmo tempo rigoroso na análise de caracteres e impressivo na descrição dos países nórdicos, que tanto contrastam com Cuba.
Outros muitos prosadores merecem ser conhecidos em Portugal, como Carlos Victória, Marilyn Bobes, Ema Lúcia Portela ou o excelente Arturo Arango, que obteve com os seus contos o prémio Juan Rulfo e alia a sensibilidade à fantasia, ao talento do inesperado.
Uma pléiade impressionante de grandes narradores, com diversas visões do mundo, da sua ilha, do seu viver, dos seus sonhos.
A boa literatura, mesmo quando não é politicamente empenhada (e nalguns destes casos não o é) cumpre sempre uma função social, mais que não seja a de interrogar e de através da palavra captar sentidos de uma época, mensagens quase insondáveis, tudo o que está latente na permanente mudança.
A uma literatura que cantou a revolução, a transformação, a Pátria e a liberdade sucede naturalmente uma outra mais crítica e inquieta, o que é natural. Mas numa e noutra Cuba está intensamente presente, com a formosura do mar e da serra, as formas de convívio de um povo alegre e afectuoso, moldado pela realidade da educação e da saúde gratuita para todos, do culto da arte e da ciência, do companheirismo, da fraternidade.
Se é certo que a constante ameaça do império americano é responsável não só pela maioria das carências, mas até com frequência por um clima de sobressalto que provoca a auto-defesa, com os seus inconvenientes, a verdade é que a sociedade cubana cria corajosamente espaços de euforia em meio das dificuldades.
A alteração de mentalidades de que o próprio tempo é agente não matou o entusiasmo desta gente, que ama a vida física, o ritmo da rumba e, apesar da redução de edições, causada pela falta de papel, continua a adorar a literatura (está sempre a abarrotar de público o mercado de livros usados na Plaza Mayor da Habana Vieja). Os cubanos habituaram-se a consumir em larga escala arte e poesia, através de exposições, recitais e livros. E, apesar das muitas dificuldades, essa chama não se perdeu. Todos os povos da América Latina olham ainda para Cuba como a Pátria da cultura, o David acossado que resiste ao Golias e leva numa mão a funda, mas na outra páginas brilhantes de escrita.
E, por falarmos de poesia, quero referir que, se Cuba teve no século XIX um grande vate romântico, José Maria Herédia, a produção lírica actual é no geral da melhor safra, com nomes da altura de Cíntio Vitier, Roberto Fernandez Retamar, Fina Garcia Marruz, César Lopez, Manuel Diaz Martinez, José Kozer, Rafael Alcidez Pérez, Georgina Herrero, Reina Maria Rodriguez, Luís Lorente, Fernandez Larrea, Omar Perez, Sigfredo Ariel, David Mateo.
Abel Prieto, o actual ministro da Cultura, tem uma visão extremamente aberta sobre a livre discussão de ideias e pontos de vista, tanto estéticos como políticos. Aliás não é estranha essa sua compreensão do mundo e da riqueza da dialéctica marxista, como objecto de discussão criadora, à amplitude de debates e perspectivas novas, expressas nas melhores revistas de Cuba, especialmente na Temas e na revista da U.N.E.A.C. (União Nacional de Escritores e Artistas de Cuba).
Se é certo que há por vezes em Cuba crispações repressivas, chocam-me profundamente que sejam tantas vezes os Estados Unidos a invocar atentados aos direitos humanos em Cuba, quando precisamente é hoje a América de Bush e dos neo-conservadores quem mais descaradamente leva a morte a outros países, com falsos pretextos, em acções de grande rapina, como a guerra do Iraque, e pratica sistematicamente a tortura, quer em Guantanamo, da forma mais desumana e ilegal, quer nos presídios militares de Bagdad ou nas cadeias secretas da Europa, já publicamente denunciadas.
Mas deixemos o horror da violência e da guerra, para tornar à cultura como meio privilegiado da valorização do ser humano e caminho imprescindível para a realização do socialismo.
Quando os olhares dos povos explorados e sobretudo das camadas mais oprimidas da América Latina se voltam para Cuba, carregados de solidariedade e esperança, é a riqueza da sua Cultura, dessa cultura de que eles são espoliados, uma das razões mais fortes dessa admiração e afecto.
Faço votos, ao terminar esta breve e incompleta panorâmica da cultura cubana, para que na Pátria de Marti, de Fidel e de Guevara, pois Cuba o adoptou, a esse paladino admirável da dignidade humana e da construção de um mundo livre e igualitário, faço votos para que, longe de definhar, como querem os adversários que a cercam, a cultura se mantenha viva em Cuba e possa voltar ao esplendor da difusão que já conheceu, com tiragens de centenas de milhares de livros de qualidade. Acreditemos no fim do bloqueio e lutemos por isso, por um crescimento harmonioso de Cuba, em todos os planos.